As relações Brasil-Estados Unidos e a Política Externa Independente (1961-1964) Síntese do Período

1º) A ascensão de Goulart à presidência, mesmo sob o regime parlamentarista, foi vista com desconfiança nos Estados Unidos.

2º) Entre os dois países havia focos de atrito que levaram a um processo de deterioração nas suas relações, só interrompido com o desenlace de Abril de 1964.  Os principais focos de atrito foram:

  • Desapropriação da empresa americana ITT, por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul
  • As exigências do FMI e do governo norte-americano para a liberação de financiamentos
  • Lei de Remessa de Lucros

3º) Como que envolvendo todas as questões, havia a preocupação do governo norte-americano com os rumos da administração de Goulart, vista cada vez mais como esquerdista e infiltrada de comunistas

4º) Observa-se por parte do Brasil a adoção de uma atitude de independência nos órgãos multilaterais, no sentido de aprofundar o abandono do “compasso de Washington”, isto é, de não secundar as posições norte-americanas. Foi o que ocorreu na VIII Reunião de Consulta de Chanceleres Americanos, realizada em Punta Del Este, em 1962, quando apreciou a questão cubana. Brasil e Estados Unidos distanciaram-se no decorre do evento. Manteve-se o Brasil numa posição de princípio a respeito do problema, sem ligá-la, portanto, à ajuda financeira norte-americana derivada da Aliança para o Progresso.

5º) San Tiago Dantas foi contrário a qualquer intervenção em Cuba, por ter entendido que o Tratado do Rio de Janeiro (TIAR) fora assinado pelas nações americanas por defendê-las de agressões extracontinentais; não poderia, por conseguinte, ser invocado para perpetrar intervenção contra um dos seus membros. Dantas defendeu a coexistência com regimes socialistas, também no continente americano. Afirmou ainda que se deveria aguardar a revolução cubana cumprir o seu ciclo interno e que o isolamento do regime Castro no continente contribuía para levá-lo ainda mais para a órbita soviética. A ideia era ter um estatuto regulando as relações de Cuba com os países americanos, para que posteriormente, esta voltasse ao leque de nações democráticas. A posição brasileira foi então divergente daquela dos Estados Unidos.  A ideia de intervenção foi abandonada, mas Cuba foi expulsa da OEA. As nações americanas, todavia, foram unânimes na declaração do marxismo-leninismo como incompatível como o sistema democrático-representativo.

6º) O apoio de Goulart a Kennedy na crise dos mísseis de Cuba não impediu a deterioração das relações entre os dois países, decorrente de pressões internas dos dois lados. O avanço dos comunistas e dos elementos da esquerda sobre o governo e os sindicatos brasileiros provocava apreensão nos Estados Unidos.

7º) Com o crescimento das divergências, os Estados Unidos passaram a intervir na política interna brasileira. O governo americano chegou a prestar ajuda financeira aos candidatos anticomunistas, principalmente no Nordeste, onde se tentou impedir a vitória de Miguel Arraes, Em 1963, o regime parlamentarista ia ser derrubado pelo plebiscito. A pressão em João Goulart era grande por parte dos norte-americanos. Os norte-americanos levantaram questões de natureza econômica, fora do programa de estabilização, mas que perturbavam as relações entre os dois países, como a lei de remessa de lucros e o comércio com a União Soviética.

8º) As grandes dúvidas de Washington não recaiam sobre o Plano Trienal, mas sobre a possibilidade de sua ampliação. Em Março de 1963, foi assinado o Acordo Bell-San Tiago Dantas, do qual se destinava uma série de empréstimos ao Brasil, por parte do governo norte-americano, do FMI e do BID. O governo Goulart não conseguiu colocar o acordo totalmente em prática, principalmente após a substituição do ministério, em meados de 1963.

A Ultima etapa – Fim da gestão San Tiago Dantas. Começo da Hermes Lima

1º) Após San Tiago Dantas, a pasta foi ocupada novamente por Afonso Arinos, num curto período de tempo. San Tiago Dantas sofreu desgaste junto aos dois grandes partidos PSD e UDN, que a não aceitação de seu nome para a função de primeiro-ministro, no lugar de Tancredo Neves, em parte deveu-se à sua política externa.

2º) Hermes Lima assumiu em Setembro de 1962 o MRE. Logo depois, o sistema internacional passou por grave momento de tensão em razão da crise dos mísseis e do bloqueio naval de Cuba determinado por Kennedy, em Outubro de 1962.

3º) O governo brasileiro, na OEA, votou FAVORAVELMENTE ao bloqueio, mas manteve-se CONTRÁRIO a intervenção militar, conforme informou Hermes Lima. Após o entendimento entre Kennedy e Kruschev, houve a desmontagem das bases soviéticas em troca da garantia de integridade territorial da ilha. No dia seguinte, o governo brasileiro enviou o general Albino Silva, em missão especial a Cuba, para contribuir na busca de uma solução pacífica

A questão cubana

1º) Já na apresentação do programa de governo do primeiro-ministro Tancredo Neves, sob o regime parlamentarista, a posição brasileira com respeito a Cuba apareceu bem definida: “Com relação a Cuba, o governo brasileiro manterá a atitude de defesa intransigente do princípio de NÃO INTERVENÇÃO, e por considerar indevida a ingerência de qualquer outro estado, seja sob que pretexto for, nos negócios internos

2º) San Tiago Dantas, em resposta a deputados, esclareceu que o Brasil se manteria fiel ao princípio da autodeterminação, como faria em relação a qualquer outro país; não se tratava de simpatia ideológica. 

3º) O exame da expulsão do governo cubano do sistema interamericano foi objeto da VIII Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, ocorrida em Punta Del Este, Uruguai, em 1962 e convocada por Resolução do Conselho da Organização dos Estados Americanos (OEA). O governo brasileiro NÃO abandonou nessa reunião os princípios acima aludidos. Sua posição, contudo, foi conciliatória. Buscou uma solução pacífica que se coadunava, inclusive, com a sua concepção de que a questão cubana situava-se no contexto da Guerra Fria e, em razão disso, dever-se-ia trabalhar pelo abrandamento das tensões. O Brasil, aliás, já se abstivera de votar a solicitação da reunião feita pela Colômbia ao Conselho da OEA, por entender que não era o caso de se invocar o Tratado do Rio de Janeiro, em que ela se baseava.

4º) San Tiago Dantas propunha a “elaboração do estatuto das relações entre Cuba e o hemisfério e sobre o qual, ouvidas as partes, se pronunciaria o Conselho da OEA. Tal solução preservaria o princípio da não intervenção e, ao mesmo tempo, poderia “como recurso final” criar “condições de neutralização do regime instaurado na República de cuba em bases jurídicas válidas, semelhantes, às que se tem estabelecido ou proposto em outras áreas do mundo”

5º) Em síntese, a posição brasileira visaria respeitar o princípio da não intervenção e ao mesmo tempo, para a defesa da democracia no continente, neutralizar o regime cubano por meio de um estatuto que regulasse as suas relações com o restante da América. 

6º) San Tiago Dantas argumentava que o isolamento total do regime de Fidel Castro poderia contribuir para um afastamento ainda maior e levá-lo, cada vez, mais para a órbita socialista, produzindo consequentemente, resultados opostos ao que se desejava. O governo brasileiro era CONTRÁRIO à aplicação de sanções porque “poderia antes de tudo, estimular as tendências pró-soviéticas” de Cuba. Ademais: “a questão cubana poderia sair da alçada interamericana, para tornar-se parte do conflito Leste-Oeste, excluindo-se, pois a hipótese de uma ação moderada por parte dos demais Estados americanos.”

7º) O governo brasileiro não assentiria “a nenhuma ação internacional que pusesse em perigo o princípio da autodeterminação do povo cubano.

8º) O resultado da VIII Reunião de Consulta reconheceu e repudiou a ofensiva do comunismo na América, e ainda:

  • Declarou também a importância da Aliança para o Progresso para impulsionar o desenvolvimento econômico e social.
  • Excluiu o governo de Cuba da participação do sistema interamericano, bem como da Junta Internacional de Defesa.
  • Suspendeu “imediatamente o comércio e o tráfico de armas e material de guerra de todo gênero com Cuba

9º) Apesar das tentativas por parte do governo brasileiro, Cuba foi excluída da OEA. O voto foi de abstenção. Segundo Dantas, a exclusão de Cuba não teria nenhum resultado na prática. Reiterou que a expulsão seria apenas nominal e ineficaz, pois Cuba não se modificara internamente nem alterara seu comportamento com o exterior por causa disso.

Política Externa Independente – Aliança para o Progresso e Estados Unidos

1º) Ao estudar-se a Aliança para o Progresso, não se pode perder de vista no Brasil o momento é o do nacional-desenvolvimento e do populismo. A posição de San Tiago Dantas com respeito à Aliança era moderada e conciliadora entre os planos políticos interno e externo. 

2º) Aceitava a ajuda externa, mas desde que tal ajuda não implicasse influência na maneira de promover o desenvolvimento. Não abriria mão o país da sua autonomia de planeja-lo e receber o apoio técnico e econômico externo que se conformasse com o planejamento nacional. Apreciava, assim, a formulação da Aliança para o Progresso, mas ressalvava que “interesses de organizações privadas, colidentes com os países subdesenvolvidos poderiam desnaturar os propósitos enunciados pelo governo norte-americano, frustrando, desse modo, os próprios objetivos de ação internacional dos Estados Unidos.

3º) A Aliança não produzia os efeitos esperados. De fato, a queda dos preços dos produtos primários anulava os efeitos da cooperação. Em razão do convite para visitar os Estados Unidos feito por Kennedy a Jânio antes da renuncia, da importância do Brasil no contexto sul-americano, e da intenção de Goulart em receber o mesmo convite para aumentar seu prestígio interno e dar um tom moderado à sua administração, foi organizado o encontro dos presidentes no país do Norte, em 1962.

4º) Goulart e Kennedy trataram dentre outros assuntos, a intenção de seu governo [governo Goulart] manter condições de segurança que permitirão ao capital privado desempenhar o seu papel vital no desenvolvimento da economia brasileira. Os resultados da viagem de Goulart aos EUA foram restritos, uma vez que um empréstimo para o Nordeste por meio da Sudene acabou não vindo em razão da pretensão norte-americana em controlar sua aplicação, e tanto o FMI quanto os bancos particulares permaneceram em atitude de expectativa, aguardando medidas de combate à inflação por parte do governo brasileiro.

5º) Afora as diferenças de enfoque sobre a Aliança para o Progresso, discutida e repelida mormente pela esquerda nacionalista, as relações com os Estados Unidos em 1962-1963 apresentavam focos de discordância. Um dos focos foi a desapropriação da empresa ITT, do ramo de telecomunicações, por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul. Reagindo a tal ato e prevenindo-se contra outros da mesma natureza, o Congresso dos EUA votou a emenda Hikenlooper, pela qual a ajuda norte-americana ficaria suspensa nos países que procedessem a nacionalizações “sem indenização imediata, adequada e efetiva” . Em 1962, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Remessa de Lucros. Essas razões foram suficientes para que o governo norte-americano se sentisse pressionado internamente.

6º) Diminuíram os investimentos estrangeiros no país e caiu pela metade, em 1962-1963, a ajuda financeira norte-americana. O quadro interno brasileiro era difícil, agravado pelo aumento da inflação, dos déficits público e do balanço de pagamentos. San Tiago Dantas, o novo ministro da Fazenda de João Goulart, logo após a queda do parlamentarismo, obteve empréstimo em Washington, condicionada sua maior parte à adoção de medidas de controle da economia e saneamento financeiro.

João Goulart – Parlamentarismo (7 de Setembro de 1961 a 31 de Março de 1964) – A gestão de San Tiago Dantas

San Tiago Dantas

1º) San Tiago Dantas, não obstante fosse oposicionista, fora designado por Jânio Quadro para chefiar a embaixada do Brasil junto à ONU. Implantado o parlamentarismo no Brasil, assumiu o Ministério das Relações Exteriores sucedendo a Afonso Arinos. Não só deu continuidade à política de Jânio/Afonso, como tornou-se um dos mais importantes formuladores da Política Externa Independente. Esta segundo ele, não fora um plano estratégico concebido a priori, mas uma ATITUDE, uma maneira de ver e encaminhar os assuntos internacionais. Segundo Dantas, os fatos precederam as ideias.

2º) A PEI de inicio fora um “critério geral”. Conforme esquematizou San Tiago Dantas, tinha as seguintes diretrizes:

  • Contribuição à preservação da paz, por meio da prática da coexistência e do apoio ao desarmamento geral e progressivo
  • Reafirmação e fortalecimento dos princípios de não intervenção e autodeterminação dos povos
  • Ampliação do mercado externos brasileiro mediante o desarmamento tarifário da América Latina e a intensificação das relações comerciais com todos os países, inclusive os socialistas
  • Apoio à emancipação dos territórios não autônomos, seja qual for a forma jurídica

3º) San Tiago Dantas acrescentou ainda: “política de autoformulação dos planos de desenvolvimento econômico e de prestação e aceitação de ajude internacional. A política exterior do Estado aparece, desse modo, como uma das faces da sua política geral em busca do desenvolvimento econômico e da reforma social.

4º) Assim, a ampliação do mercado externo para os produtos brasileiros, aumentando o intercâmbio com países da América Latina e do bloco socialista, constituiu uma das preocupações básicas da PEI, vista como necessária para aumentar a capacidade de importação do país e fazer face ao imperativo de se lhe aumentar o produto nacional bruto.

5º) Para Dantas, o pan-americanismo era “um instrumento de luta pela emancipação econômica e social das nações deste hemisfério“, pois estava ultrapassada sua fase jurídico-política. Deveriam as nações americanas “estimular e institucionalizar a sua colaboração recíproca para vencer os problemas de elevação do nível de vida e de cultura de suas populações, sem intervir, contudo, em questão de ordem interna das nações, nem impor limites à autodeterminação dos povos”. No entender do chanceler, certas empresas internacionais poderiam ser fator de perturbação institucional.

6º) Aos países americanos, propunha um relacionamento baseado na igualdade, sem atenção a blocos ou preferências. Com referência a Argentina, propunha uma política de cooperação e afeto. No que dizia respeito a Cuba, defendia o princípio de não intervenção. 

7º) Cabe ainda ressaltar a adoção de uma posição de independência em relação a blocos. Com efeito, na ONU, o Brasil prometia votar caso a caso, segundo os objetivos permanentes da política internacional do Brasil e na defesa dos seus interesses. Tal atitude desinibia o governo brasileiro na procura do que se designava por normalização das relações comerciais e diplomáticas com todos os países. Aquelas com integrantes do mundo socialista objetivaram o aumento do mercado para os produtos brasileiros, em atenção às necessidades de importação, já referidas (Ver esse post https://fichamentohpexbra.wordpress.com/2013/01/05/politica-externa-de-janio-quadros-aproximacao-a-europa-oriental/ e este outros relacionados a Cuba e URSS)

8º) Todavia, as relações comerciais e diplomáticas com os países socialistas NÃO IMPLICARAM “simpatia, ou mesmo tolerância, em relação a regimes que se inspiram em princípio diversos dos que informam o sistema democrático representativo, que praticamos” As eventuais infiltrações poderiam ser contidas com medidas de ordem interna. Com referência a Europa Ocidental, a intenção era expandir as relações comerciais políticas e culturais.

Reação interna e continuidade

1º) Vale registrar, ainda em relação a curta gestão de Jânio Quadros, o envio de diplomata brasileiro, como observador, à Reunião Preliminar e Conferência de Chefes de Estados e de Governos de Países Não Alinhados, realizada no Cairo, em 1961.

2º) Apesar da reafirmação de que o Brasil fazia parte do mundo livre, sua nova atitude em relação a África, a intenção de restabelecer relações diplomáticas com a União Soviética e o posicionamento em relação a Cuba provocaram reação entre os conservadores, que viram na política exterior de Jânio um perigoso e novo alinhamento internacional do Brasil. 

3º) A administração de Jânio Quadros assumia duplo caráter, cujos elementos eram aparentemente conflitantes. No plano interno, a ortodoxia adotada para estabilizar a economia, bem como outras medidas administrativas, eram de natureza conservadora. No externo, por tudo que foi exposto, a administração mostrava-se avançada, o que agradava às esquerdas e aos nacionalistas. 

4º) Jânio apresentou sua política externa de modo que lhe rendesse dividendos políticos internos. Na campanha eleitoral, defendeu a revolução cubana e o reatamento com a União Soviética. Até visitou Cuba, a  convite, recebido em Março de 1960, de Fidel Castro. Uma vez no poder, sua política externa desagradou a UDN – que o apoiara na eleição presidencial – e às lideranças conservadores com grande poder de fogo, como Carlos Lacerda. Jânio colhia frutos não desejados ao usar a política externa como instrumento a serviço de resolução de problemas internos.

5º) Na crise política da renúncia, na qual a falta de apoio a Jânio no Congresso Nacional teve papel decisivo, não se pode deixar de relacionar sua política externa como um componente que contribuiu para o distanciamento entre ele e a UDN.

6º) Jânio acabou não restabelecendo relações diplomáticas com a União Soviética, bem como não reconheceu a China Continental.

7º) Embora a renúncia de Jânio Quadros tenha provocado grave crise política interna e de mudança de rumos, o mesmo não aconteceu no referente à política externa. Francisco Clementino de San Tiago Dantas, ministro de Relações Exteriores do primeiro gabinete parlamentarista, do qual Tancredo Neves era o primeiro-ministro, deu continuidade àquela política. Essa continuidade deve-se sobretudo, ao fato de a Política Externa Independente ter sido desdobramento de uma tendência da política exterior brasileira que, a rigor, vinha desde o SEGUNDO GOVERNO Vargas. Tendência essa de NÃO acompanhar a política externa norte-americana, e que decorria da emergência de nova configuração econômica brasileira, que modificava a complementaridade das economias dos dois países.